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“Enquanto a justiça for cega, a cultura do estupro seguirá deitada em berço esplêndido”, diz advogada

Você deve ter ouvido falar no termo “estupro culposo”. Afinal, esse termo foi repudiado ontem por várias pessoas após o caso de Mariana Ferrer. Para quem não sabe, a Justiça inocentou André de Camargo Aranha – empresário acusado de estuprar Mariana – em Santa Catarina, em 2018. Para a Justiça, não havia provas para caracterizar a intenção do estupro.

Para repercutir o caso, o Eufemea conversou com Lissa Sarmento, advogada e especialista em ciências criminais. Em uma análise sobre o ocorrido, a advogada disse que “o percurso em busca da igualdade de gênero é longo e tortuoso” e que “enquanto a justiça for cega, a cultura do estupro no Brasil seguirá deitada em berço esplêndido”.

Lissa disse que no que diz respeito ao aspecto jurídico e a tese supostamente levantada pelo  Ministério Público de Santa Catarina e acolhida pelo magistrado, que absolveu o acusado, “deve-se considerar que a terminologia estupro culposo não foi utilizada durante o processo”.

“É possível chegar a essa conclusão, a partir da leitura do dispositivo (parte decisória) da sentença, onde de fato há um impasse. Uma vez que, com base no laudo médico do exame toxicológico, apesar deste confirmar a rotura himenal recente e, portanto, atesta a virgindade da vítima, o mesmo não apresentou nenhuma alteração metabólica que indique a presença de substâncias entorpecentes, inclusive álcool”, explicou.

Lissa comentou que nesta perspectiva, e apenas nessa, Mariana não teria sido estuprada, pois o agressor “em pleno gozo de suas faculdades mentais não teria sido capaz de perceber a realidade fática que o cercava quando conduziu a jovem cambaleante para um quarto anexo cuja finalidade de práxis é justamente servir como local para que André consuma o ato sexual com meninas que eventualmente o acompanhem”.

“E pasmem, diante desta falsa percepção, o acusado teria praticado o crime de estupro em” erro de tipo”, ou seja, ele não sabia que estava cometendo um crime e portanto, só poderia ser condenado em caso de dolo (quando o agente tem intenção de praticar o delito). Sob esta ótica, o crime foi culposo (sem intenção), logo o agressor deve ser absolvido”, justificou.

A advogada disse que para ela, parece que aquilo não parece verdadeiro. Afinal, há o outro lado da história. Ou seja: o lado da vítima que contraria toda a narrativa irreal e machista. “E que não poderia ser desconsiderado”.

“Existe um conjunto probatório trazido por Mariana, que vai além do seu depoimento pessoal, este acatado pela doutrina processual penal como uma prova de suma importância em se tratando de crimes contra a dignidade sexual dada a situação de vulnerabilidade que a vítima se encontra, a exemplo das inúmeras mensagens que Mariana passou para suas amigas afirmando que estava em estado de inconsciência e pedindo ajuda reiteradamente”, acrescentou.

E Lissa ressalta que além de toda complexidade que há no caso, ainda tem o vídeo da audiência onde há quatro autoridades. “Homens distintos e tradicionais se portando como verdadeiros paladinos da moral e dos bons costumes com uma vítima de estupro mulher, jovem, bonita e sem pudor de compartilhar seus atributos físicos em fotografias nas redes sociais. Exatamente como eu e tantas outras mulheres o fazem, mas que jamais deveria ser utilizado como argumento para invalidar nossa dignidade ou minimizar nossos direitos”.

Sessão de tortura psicológica

A advogada explica também que na época, Mari era modelo profissional e que suas fotos foram mais que suficientes para que Mariana fosse submetida a uma “verdadeira sessão de tortura psicológica, onde a partir da fala do advogado de defesa do acusado, Dr. Cláudio Gastão da Rosa Filho, a jovem é transformada sumariamente de vítima em acusada, além de ter sua intimidade dissecada por um homem misógino, vulgar e preconceituoso que não titubeou em ridicularizá-la na frente do juiz que deveria zelar pelos seus direitos”.

“É, inacreditavelmente tinha-se um juiz. O juiz é quem conduz a audiência, mas o Dr. Rudson Marcos se manteve inerte, ou melhor deliberadamente omisso, juntamente o Promotor de Justiça (teoricamente, um fiscal da lei) que parece igualmente apático diante da infindável sequência de agressões a que a vítima foi submetida”, comentou.

Por fim, a advogada disse que o que chamou atenção é que “todos os homens da sala permaneceram mudos e de braços cruzados”.

“Assistem aos disparates do advogado com uma concordância implícita e latente, retrato do patriarcalismo judicial que reverbera em um silêncio ensurdecedor, mas que sai como um grito de revolta por todas nós mulheres que fomos direta e indiretamente violentadas por tamanha violência institucional, tristemente praticada no seio da Justiça”, concluiu.

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Raíssa França

Cofundadora do Eufêmea, Jornalista formada pela UNIT Alagoas e pós-graduanda em Direitos Humanos, Gênero e Sexualidade. Em 2023, venceu o Troféu Mulher Imprensa na categoria Nordeste e o prêmio Sebrae Mulher de Negócios em Alagoas.