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De empregada doméstica a advogada criminal: a trajetória de abusos e superação da alagoana Luana Camilo

Em um mês, dia 27 de abril, comemora-se o dia da empregada doméstica no Brasil. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o país é o país com o maior número de empregados domésticos no mundo. Mais de 6 milhões de brasileiros dedicam-se a serviços domésticos, sendo que 92% destes trabalhadores são mulheres.

Mulheres ou meninas como um dia foi a alagoana Luana Camilo, que teve a sua infância e a adolescência roubadas enquanto servia os lares por onde passou.

Filha de cortadores de cana, a ex-doméstica conta que as mulheres da sua casa foram criadas para oferecer serviços pelo povoado onde cresceu. Ela começou a fazer bicos para conhecidos ainda criança e de emprego em emprego, e de abuso em abuso, Luana é uma sobrevivente da cultura da nossa sociedade.

“Estava sempre arrumando bico por lá, lavava roupa e ganhava cinco reais, limpava quintal e ganhava uma blusa. Nas férias de São João e dezembro já era certo, íamos (eu e as meninas da cidade) trabalhar nas casas da parte litorânea, eu ia trabalhar para poder comprar um caderno, uma calça jeans, que era o sonho ter uma calça nova, e ainda ajudar com um trocado em casa”, relembra Luana.

“Éramos oito filhos de pais analfabetos, mas mesmo sem estudo minha mãe sempre quis que os filhos soubessem ler. Como saíam para cortar cana ainda de madrugada, meu irmão mais velho era encarregado de mandar todo mundo para a escola. Não tinha sandália para todo mundo ir no mesmo horário, então tínhamos uma estratégia: os mais velhos estudavam de manhã e os mais novos estudavam à tarde, que era pra usar a roupa e sandália de quem estava voltando”, conta.

Foto: Cortesia

Exposta a vários patrões e dentro da casa de pessoas com as mais diversas índoles, a mãe de Luana sabia o que sua filha poderia enfrentar e, mais uma vez, lhe ensinou uma lição que serviria para toda a vida.

“Éramos muito humildes, mas minha mãe era muito ligada, me deixava muito alerta, dizia: “se alguém fizer algo com você venha embora, você não está lá para servir a cama de ninguém”.

Mas mesmo assim, ela conta que desde que começou a fazer bico, com 10 anos, ela sofreu vários assédios. “Não só tentativa, mas estupro de vulnerável mesmo, filhos de patrões que me apalpavam, tentavam roubar beijo, brechar o meu quarto nos fundos, forçavam a porta. Houve uma cena que lembro bem, um rapaz, filho do patrão, que me agarrou na pia da cozinha tentando levantar minha roupa, bati com a frigideira na cabeça dele. Naquele dia me demitiram e me largaram na beira da estrada com R$ 30,00 porque eu podia trazer problema para eles”, relata.

“Aos 14 anos iniciei um namoro com uma pessoa 17 anos mais velha que eu, perdi a virgindade com esse cara que era abusivo. Vivi todos os tipos de violências nessa relação, física, psicológica. Essa foi a primeira vez que tentei acabar com a minha própria vida. Para não ter que casar com ele, tomei a decisão de fugir, peguei dez reais e vim pra Maceió para a casa de um irmão meu”, conta.

Trabalhando na capital, a sequência de abusos físicos e psicológicos só continuou. “Perdi mais um emprego numa casa de família por assédio. Meu patrão passou a mão na minha bunda duas vezes, na terceira vez eu peguei no pescoço dele e ele disse que eu fosse pra casa porque eu precisava me acalmar. Quando voltei no outro dia a esposa me demitiu porque disse que eu era um risco para o casamento”, conta Luana.

“No meu último emprego como doméstica, a filha da patroa gostava de me diminuir porque tinha condições e eu não. Um certo dia ela me acusou de furtar os leites condensados, terminei meu serviço, peguei vinte reais emprestado, comprei tudo de leite condensado e coloquei na mesa, expliquei que não foi a educação que me deram e pedi para sair”, completa.

“Quando perdia o emprego ficava desesperada porque sabia que viriam tempos difíceis. Pegava todo tipo de bico que imaginarem. fazia faxina, lavava forma em padaria. Aos 15 anos morava sozinha num barraco na grota do Novo Mundo comandada por traficantes, tinha uma cama de ferro e um fogão, mas nunca consegui comprar um botijão, mas mesmo com tanta dificuldade e pensando em desistir (tentei suicídio por mais duas vezes), nunca deixei de estudar, sabia que era o estudo que podia mudar minha vida”, relembra.

“Eu andava 7km até o Cepa para ir para a escola e era lá que eu conseguia comer, eu comia duas vezes por semana nesse período, bolacha, cuscuz, ki suco. Em casa não tinha comida, quando sentia fome, tomava um copo de água da pia e ia dormir para esquecer”.

E foi, de fato, o estudo que fez com que Luana ascendesse e mudasse a vida, não apenas dela, mas de toda a família. “Trabalhei como vendedora no comércio, depois fui auxiliar administrativo. Me destaquei como vendedora e fui promovida, nessa época tinha prestado vestibular e minhas notas tinham sido boas, eu conseguia entrar em vários cursos, mas ainda não entrava no de Direito. Meu chefe propôs pagar metade da minha faculdade. Depois, trabalhei como vendedora no shopping, às vezes era pagar o aluguel ou comprar comida. Minha mãe chegava com feira para mim, minhas amigas me levavam cuscuz e assim, aos pouquinhos, fui pagando minha faculdade. Aí voltei para a casa dos meus pais para estudar para a OAB e, em 2019, virei advogada”, conta.

Orgulho para a família

“Foi o maior orgulho para minha família, meu pai era conhecido como iludido no interior por dizer que a filha ia ser advogada. Até os meus colegas advogados no interior me diminuíram. Temos um país patriarcal, machista, com culturas violentas para as nossas crianças eu fui só mais uma vítima”, comenta.

Ela revela ao Eufêmea que só teve noção de tudo que viveu: assédio, violência emocional e sexual, quando ela se tornou adulta e cursando direito. “Aí fui entender a legislação, crimes sexuais, e todas as aulas que me falavam disso me batiam um gatilho forte porque eu passei por tudo aquilo”, completa.

“Eu poderia ser uma menina que por tudo que eu vivi, em vez de ser advogada, era forte candidata a ser cliente de alguém da área criminal”.

Os desafios de Luana não acabaram. Por ser mulher advogada, ela agora enfrenta outros tipos de preconceito e abusos, mas segue firme apegada ao estudo, terapia e ao sentimento de orgulho da família. “Escolhi atuar justamente nessa área criminal, onde nossa atuação feminina é muito contestada ainda, enfrento um judiciário machista, fruto do patriarcado, colegas desleais que colocam a nossa capacidade em questão diariamente”, afirma.

Numa família composta 80% por mulheres, ela foi a única entre todos que concluiu o ensino médio e a única que tem ensino superior.

“Minhas sobrinhas dizem sempre que se orgulham de mim. Graças à advocacia, pago a escola do meu sobrinho, as despesas da casa do meu pai, comprei meu carro e realizei meu maior sonho, comprei meu apartamento. Atuo na capital e interior, tenho processos em Pernambuco, em Minas Gerais, faço pós em criminologia e sigo estudando para fazer um mestrado fora. Pretendo sempre me aprimorar por mim e para que meus clientes tenham uma defesa da melhor qualidade”, encerra.

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Meline Lopes

Jornalista, advogada, especialista em comunicação e em marketing digital. Atuou como repórter de televisão durante 9 anos em diversas emissoras do Brasil. É repórter do Eufêmea.