No mês de fevereiro, uma mulher divulgou um vídeo do próprio estupro para provar ataques do marido, em São Paulo. A vítima, de 34 anos, afirmou que no momento do crime estava sob efeito de medicações após uma série de agressões sofridas pelo esposo, uma depressão pós-parto e, principalmente, depois da morte da mãe. O crime ocorria com frequência dentro do relacionamento.
Ao Eufêmea, especialistas afirmam que o caso é classificado como estupro marital. Elas falam sobre os danos psicológicos causados às vítimas e em seus filhos, como denunciar o crime e a importância de proteção às mulheres.
De acordo com a advogada e presidente da Comissão Especial da Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil de Alagoas (OAB/AL), Cris Lúcio, o estupro marital acontece quando o crime de estupro é cometido no âmbito da relação conjugal.
Ela afirma que caso a esposa se negue a ter a relação sexual ou resolver parar no início do ato sexual ou durante, e sua vontade não for respeitada, configura o crime de estupro.
Proteção às mulheres e divórcio
Segundo a especialista, não há fórmula para que as mulheres possam se proteger do crime de estupro seja ele marital ou não, haja vista ser ela a vítima e não dar ensejo para a prática do crime. “O que podemos nos preocupar, enquanto sociedade/comissão que luta pelos direitos da mulher e pela proteção contra todos os tipos de violência é assegurar que essa mulher vítima tenha o devido acolhimento e todos seus direitos resguardados”, afirma Cris Lúcio.
“No mais, a proteção para que a mulher não seja vítima de violência sexual, seja dentro ou fora do casamento, é conscientizar a sociedade de que mulher não é propriedade do homem, do marido, que não é um objeto e erradicar essa cultura do estupro. Então, proteger a mulher contra o crime de estupro é papel de toda sociedade”, completa.
Com relação ao divórcio, a advogada informa que o estupro marital não necessário é pré-requisito para a ação de divórcio. “Mas acreditamos que uma mulher que denuncia seu marido pelo crime de estupro, não mais tem o desejo de continuar com o matrimônio, haja vista tal crime, no âmbito conjugal, estar elencado na tipificação dos crimes de violência doméstica e familiar”.
Cris explica ainda que não há legislação específica para julgar o estupro marital. “O tipo penal é apenas de estupro e está tipificado no art. 213, do Código Penal Brasileiro. No caso do estupro marital, há o agravante da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), por se tratar também de crime/violência doméstica e familiar”.
Como denunciar?
De acordo com a profissional, a mulher pode denunciar indo até uma delegacia especializada, se houver em sua cidade, como é o caso de Maceió, onde existe a delegacia especializada 24h, situada no Complexo de Delegacias Especializadas (Code), no bairro Mangabeiras. Caso não exista delegacia especializada no município, a denúncia pode ser feita na delegacia que houver em sua cidade.
“Pode ligar para um 180, que é um canal que funciona 24h de atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica, que no caso de estupro marital se enquadra no contexto de violência doméstica e ainda pode fazer a denúncia no canal da ouvidoria da mulher, pelo site da OAB/AL”, orienta.
Conforme a advogada, por se tratar de uma denúncia, seja de qualquer forma de estupro, é necessário que hajam provas do crime. “Seja o exame de corpo de delito, uma filmagem, testemunhas. Mas lembrando que a palavra da vítima tem uma grande importância na apuração do delito, bem como na conclusão do crime”.
“Como a Lei Maria da Penha engloba situações de violência doméstica e familiar em relações homoafetivas, no caso de estupro marital pode ser aplicado o agravante da Lei Maria da Penha, tendo mesmo julgamento que o estupro marital em relações entre marido e mulher”, conclui.
Psicóloga fala sobre crime de estupro marital
A Psicóloga Diana Moura afirma que, primeiramente, é importante esclarecer o crime de estupro marital, pois esta é uma das maiores dificuldades entre as vítimas. “O estupro marital é aquele que tem como sujeito ativo o marido/namorado, ou seja, o crime acontece dentro do relacionamento estável, dificultando ainda mais a sua identificação”.
Para ela, construções históricas e sociais levam a entendimentos sobre os papéis do homem e da mulher dentro de uma relação. “Com isso, comportamentos abusivos podem muitas vezes ser considerados normais. Quantas mulheres não cedem a relação sexual sem o desejo do ato por terem aprendido que precisam satisfazer seu parceiro, e não sabem que isso é um estupro? Isso tudo acontece dentro de uma relação estável”.
Danos psicológicos
Os danos psicológicos nos casos de estupro marital podem ser inúmeros, mas ainda muito invalidados, havendo dificuldade para relacioná-los à situação de violência sofrida dentro do casamento .
Diana cita que dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), consideram que mulheres vítimas de abuso sexual podem desencadear problemas médicos, sociais e psicológicos. como por exemplo o transtorno do estresse pós traumático (TEPT), depressão, ansiedade, distúrbios alimentares, baixa autoestima, distúrbios sexuais, entre outros.
“A dúvida sobre o estupro marital é frequente e muitas vezes pode vir acompanhada com um sentimento de culpa. Alguns estudos apontam que existe essa questão da culpabilização, principalmente por como a sociedade entende o estupro, tornando a situação ainda mais delicada de lidar”, explica.
Casos de violência em relacionamentos homoafetivos
A psicóloga afirma que o crime também ocorre em relações homoafetivas, assim como em qualquer outra relação. Ela diz que, embora haja menor investimento científico no estudo da violência nas relações íntimas na população homossexual, as evidências comprovam que este é um problema que não pode ser ignorado.
“A existência de um número indeterminado de pessoas homossexuais em todo o mundo, apontam para a necessidade de escuta da população homossexual para identificação dos possíveis casos de violência nos relacionamentos homoafetivos”, comenta.
“Crianças são vítimas invisíveis da violência doméstica”
Quando o casal possui filhos, a especialista aponta que os atos de violência doméstica contra a mulher dentro de casa afetam o desenvolvimento e a saúde das crianças que convivem com essa situação. “Essas crianças são vítimas invisíveis da violência doméstica”.
“Os filhos que presenciam as inúmeras violências praticadas pelo agressor podem desenvolver traumas ao longo do tempo como sintomas de depressão, ansiedade, síndrome do pânico, dependência química, problemas de relacionamento”, menciona.
Ainda segundo Diana, eles também correm risco de ter prejuízos cognitivos, como distúrbios na aprendizagem. “O baixo rendimento escolar pode desencadear baixa autoestima e perda do interesse pelos estudos. Outro impacto que ocorre em consequência da vivência constante com a violência, é a naturalidade com que esse comportamento é absorvido pela criança”.
Por fim, a psicóloga destaca que é necessário ter atenção especial a duas situações: a importância da oferta do acompanhamento psicológico para manejo responsável da violência para as crianças; e a necessidade de educá-las para a ‘não naturalização’ da violência e dos danos provocados por ela.
“O estresse psicológico com a situação pode fazer com que essa criança venha a repetir ou aceitar ser vítima de relações abusivas no futuro, por isso a necessidade da oferta do amparo e acompanhamento especializado após um processo de violência doméstica e de separação dos pais”, pontua.
Como identificar o crime e auxiliar a vítima
Diana informa que a vergonha e o temor do julgamento social também contribuem para o silêncio e muitas mulheres permanecem em situação de violência doméstica por muito tempo.
Para auxiliar na identificação desses casos, Moura destaca que sempre que a mulher perceber que está em uma relação onde o ato sexual contraria o seu desejo, ela já vive um dos tipos da violência doméstica, segundo a Lei Maria da Penha, a chamada violência sexual.
“Nesse caso, a vítima deve se dirigir a uma delegacia especializada da mulher, onde será registrado o boletim de ocorrência. E, nas cidades ou casos onde a delegacia da mulher não exista fisicamente, ela pode realizar a denúncia de forma online ou ainda procurar os serviços especializados como CREAS e Centros de Atendimento à Mulher em Situação de Violência no seu município”, esclarece.
Em seguida, será averiguada a situação e, se necessário, vão ser oferecidos os serviços disponibilizados para vítimas de violência doméstica, de acordo com a psicóloca. “Nesse momento a mulher precisará contar com uma forte rede de apoio, além de acompanhamento psicológico”.
“É importante evitar o julgamento e não falar contra o abusador. O medo de ser culpabilizada por algo que ela nem entende bem o que está acontecendo acaba gerando medo, vergonha e culpa. O principal, é pedir que essa mulher busque acolhimento livre de julgamentos na certeza de que ela não tem culpa na violência sofrida e que ela tem total direito de recorrer a algum tipo de órgão público”, orienta.