Ela é africana e veio para Alagoas em 2005 para estudar medicina na Universidade Federal. Aqui se formou e também concluiu a especialização em ginecologia e obstetrícia. Por mais que Keila Moreno tenha nascido em Cabo Verde, foi em Alagoas que ela viu surgir a “Dra. Keila”, embora nem todo mundo a considere como tal.
Ela contou que precisa sempre manter uma postura firme, atender de cara séria e se impor.
“Quando finalmente consigo que me ouçam é que dizem: “ah, você é a médica, né?”, e eu digo, “sim e eu já tinha te falado antes”. Não sei se nunca ouvem ou fingem que não escutaram”, completa.
Ao Eufêmea, Keila contou que era coordenadora de um hospital até poucos dias e que foi apresentada como tal. “O meu colega instrumentador estava do meu lado, homem e branco. Quando entramos no centro cirúrgico se referiram a ele como coordenador do serviço e não a mim, e ele que teve que corrigir o equívoco”, reforça.
Keila diz não ter tantos problemas em hospitais onde já atua há mais tempo, mas quando chega um funcionário novo ou precisa estar em outro serviço, a história se repete.
“Lembro de um caso de uma estudante de medicina que, ao entrar no centro cirúrgico, se dirigiu ao instrumentador pedindo autorização para entrar na cesariana, o instrumentador disse: “quem define é a dra. Keila e ela está aí sentada ali (só tinha eu sentada), a mesma não foi falar comigo. Aguardou a anestesista entrar e perguntou novamente se poderia entrar, a anestesista disse o mesmo e foi só aí que a estudante veio falar comigo”, relembra.
“Às vezes estou descansando no estar médico, os estudantes vão se apresentar ou passar os casos ou chamar para alguma urgência, estou lá, olham pra mim e questionam: “cadê o médico?!””, pontua.
Episódios de racismo são frequentes
Os episódios de racismo acontecem com frequência também por parte dos pacientes. “Você passa entre eles para entrar no consultório e ouve os cochichos: “acho que ela médica”, aí outro diz, “não, acho que não”.
Ela relembrou uma vez que estava atendendo a paciente e a mesma se virar para a enfermeira que era loira e branca, e perguntar: “doutora, vou ficar internada, qual o meu caso?” e a enfermeira dizer que “a médica que está te atendendo vai dizer”.
“Em algumas situações já respondi de maneira grosseira, em outras me calo e respiro fundo porque se eu for responder todas as vezes não faço nada dentro do hospital. A sociedade ainda não está preparada ou finge não estar. Às vezes pego uber saindo do plantão e ele pergunta “você é enfermeira desse hospital, ne?”, quando digo que sou médica, ele olha e diz: “e é? pensei que fosse enfermeira”, e as desculpas são as mais diversas: “você é muito nova, ou pensei que era outra pessoa””, afirma.
Recentemente, dra. Keila fez o desabafo em uma postagem que repercutiu bastante nas redes sociais, relatando que uma paciente prontamente a reconheceu como médica e o quanto isso a emocionou.
“Essa acompanhante que mostrei no post realmente mexeu comigo, tanto pelo fato de me olhar e ao primeiro contato se dirigir a mim como médica, assim como a força da filha que era a paciente – mulheres negras historicamente são tidas como “fortes”, prova disso é que a maior parte das cirurgias experimentais foram feitas em mulheres negras e sem anestesia principalmente na cirurgia ginecológica. Eu podia ter feito a sutura daquela paciente só com anestésico local, mas ela estava ali vulnerável, levei-a para o centro cirúrgico, para dar um pouco mais de conforto”, conta.
“Tive que provar para os outros”
A médica disse que muitos a enxergam como uma pessoa forte, segura e firme, mas na verdade essa foi a forma que ela encontrou de se blindar por conta de situações em que teve que se provar para os outros.
“Por ter que provar todos os dias que você merece estar nessa posição, torna-se exaustivo”, desabafa.
Keila diz que nunca confrontou ninguém apontando racismo, mas após ter sua filha passou a se sentir preocupada com o que ela precisaria passar e decidiu se expor mais e estudar sobre o assunto, “vejo as meninas pegando no cabelo dela e falando: “o cabelo é fofinho não é tão duro não”. Minha filha ainda não diferencia a cor e eu não quero que ela sinta isso na pele. Venho de um país mestiço onde não nos preocupamos com isso. Aí a gente vai levando até onde o calo aperta até quando não dá pra segurar mais”, afirma.
E não é só para a filha o esforço de tentar lutar diariamente pelo seu espaço, mesmo sem intenção, o simples fato de ser negra é médica, algo visto com preconceito por tantos, é motivo de esperança para alguns.
“Lembro do espanto de uma adolescente de 17 anos ao chegar num PSF que fui atender no interior, quando me viu e entrou na sala para ser atendida disse: “doutora, a senhora não sabe o quanto estou feliz por estar sendo atendida por uma negra igual a mim, sou estudante e quero fazer medicina, e ver a senhora aqui atendendo me estimulou a estudar mais””, encerra emocionada.