Colabore com o Eufemea
Advertisement

“Nunca o enxerguei como pai”: o relato de mulheres que cresceram sem a presença paterna

Foto: Mãe da Cecília e Cecília

“Morei com meu pai até os 7 anos. Ele era alcoólatra e fumante e, quando chegava em casa, descontava tudo em mim, na minha mãe e na minha irmã. Até essa idade, presenciei brigas intensas, a ponto de, todos os dias, os vizinhos precisarem intervir para que o pior não acontecesse”, relata a pernambucana Cecília Calado. Ela é uma das mulheres que cresceram sem a presença do pai no país.

Ao Eufêmea, ela compartilha que sua infância foi marcada por episódios de violência doméstica, com um pai que não exercia o papel de provedor e mantinha um comportamento controlador e imprevisível.

“Uma vez, ele quebrou praticamente todos os eletrodomésticos que tínhamos em casa. Tenho essas imagens marcadas na minha memória até hoje”, relata Cecília, que busca há anos auxílio psiquiátrico e psicológico para superar os traumas vividos.

“Nunca o enxerguei como uma figura paterna”

Após a separação dos pais, a pernambucana sentiu alívio e liberdade. “Passei a brincar na rua livremente e em paz — já que, antes, sempre havia uma briga, porque ele simplesmente não concordava, e minha mãe batia de frente — também podia comer o que quisesse e dormir na hora que o sono chegasse”, conta.

A ausência de uma figura paterna e a convivência até os sete anos com um pai que não era presente, nem emocional nem financeiramente, fizeram com que Cecília nunca o visse como uma verdadeira figura paterna. “Morei com ele até os 7 anos, mas nunca o enxerguei como tal. Ele nunca cumpriu sequer o papel de garantir metade do sustento da casa”, afirma.

Consequências emocionais

A pernambucana reconhece que, apesar das dificuldades, a ausência de um pai e a convivência em um ambiente hostil moldaram sua visão sobre a vida e as relações. Hoje, ela não sente vontade de se casar e tem dificuldade em confiar nos homens.

“Acho que isso se deve a essa relação conflituosa, até porque a primeira impressão que tive dos homens foi de alguém bêbado, fumante, violento e imprevisível”, expõe.

No entanto, Cecília destaca que essa experiência a influenciou positivamente na luta contra o machismo e relacionamentos abusivos.

“Desde criança, nunca tive aquela ‘obediência’ fervorosa que muitas mulheres, criadas com a figura paterna em casa, geralmente têm. Não me vejo colocando a comida de um homem no prato, perguntando o que devo fazer ou dizer, ou pedindo permissão para cortar o cabelo. Não tenho medo de refutá-los e dizer que estão errados”, comenta.

A vida de Cecília foi marcada pela ausência da figura paterna, mas ela reforça que encontrou apoio e educação nas mulheres que a cercam diaramente.

“Um dia, li um provérbio africano que diz: ‘É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.’ Eu tive essa aldeia! Fui educada por todos que passaram pela minha vida: pelas minhas tias, que cuidavam de mim nos fins de semana para que minha mãe pudesse terminar a faculdade; pela minha avó, que participava do rodízio aos fins de semana; pelas minhas vizinhas; e pelas mães das minhas amigas”, comenta.

“Fortalecer como mulher”

Foto: Cortesia ao Eufêmea

A assessora técnica Aline Emanuelle também cresceu em um ambiente marcado pela ausência de seu pai. Filha de um relacionamento extraconjugal, ela foi registrada pelo genitor, mas passou a infância sem conviver com ele ou com seus irmãos. A falta de uma figura paterna e de apoio financeiro marcaram sua infância no bairro Benedito Bentes, onde foi criada principalmente por sua mãe, avó e tias.

“Meu pai fazia visitas esporádicas à minha mãe, sempre bêbado, e eu me sentia muito mal com isso, porque parecia que ele não vinha por mim, e o álcool me incomodava, além das brigas entre eles, que muitas vezes envolviam violência doméstica. Lembro de um dia em que tivemos que fugir para a casa de um vizinho, de madrugada. Eu passava muito tempo na casa dos meus avós”, diz ela.

Crescer em um ambiente onde as mães eram frequentemente abandonadas pelos pais dos filhos fez com que Aline aprendesse desde cedo sobre o machismo e a normalização de comportamentos masculinos prejudiciais. “Aprendi cedo que eu precisava me fortalecer como mulher para poder lutar também por outras mulheres”, afirma.

Tratamento e reaproximação

Aos 11 anos, ela decidiu confrontar o pai sobre a falta de convivência com seus irmãos, e foi então que ele a matriculou na mesma escola que eles, possibilitando o início de uma relação mais próxima.

“Na infância, eu me sentia muito triste, rejeitada por ele e por sua família. Eu não entendia por que estava sendo punida por algo que eu não escolhi, algo que ninguém escolhe, que é nascer. Eu senti muitas coisas ruins: raiva, tristeza, abandono. Mas, ao mesmo tempo, eu queria muito que ele me enxergasse, que estivesse comigo. Eu tinha uma admiração por ele. É meio dúbio, mas era exatamente assim”, relata.

Ela relata que, aos 14 anos, entrou em depressão e também desenvolveu anorexia. Para Aline, o tratamento foi fundamental para que ela se perdoasse por uma culpa que não era sua.

“Eu me percebi como mulher, como uma potência que pode e deve escrever sua própria história. Percebi que minha vida é marcada por muita força e que eu sobrevivi, literalmente, então tomei as rédeas e segui em frente”, disse.

No entanto, com o passar dos anos, Aline e seu pai começaram a se aproximar, e ela valorizou cada momento que puderam compartilhar juntos. “O tempo, compositor de destinos, nos uniu. Passei os últimos anos aproveitando, respeitando alguns limites, a presença do meu pai”, afirma.

Além das necessidades básicas…

Foto: Cortesia ao Eufêmea

Mas quais são os impactos da ausência emocional paterna? A psicóloga Huíla Clapp destaca as dificuldades no desenvolvimento humano, ressaltando que um crescimento saudável vai além do suprimento das necessidades materiais básicas, como moradia, alimentação e educação.

Segundo Clapp, o vínculo estabelecido entre os cuidadores e a criança é crucial para um desenvolvimento equilibrado. “O que a ciência vem nos mostrando é o quanto o desenvolvimento saudável do indivíduo está também ligado à qualidade do vínculo estabelecido entre pai, mãe e bebê. Precisamos, por exemplo, de afeto, segurança, proteção e limites.”

Historicamente, o papel do pai foi muitas vezes limitado ao sustento material da família, enquanto a mãe assumia a função emocional. Essa divisão, segundo Clapp, deixou muitos pais desconectados emocionalmente dos filhos, o que pode gerar consequências significativas.

“Teorias apontam que crianças cujos pais estiveram emocionalmente conectados às suas necessidades podem se tornar adultos com relações mais saudáveis e maior segurança emocional”, afirma.

De acordo com Clapp, a ausência de um dos cuidadores, seja física ou emocional, pode causar impactos na vida de uma criança. Ela destaca que a ausência emocional ocorre quando o cuidador está fisicamente presente, mas emocionalmente desconectado.

Esse tipo de ausência pode resultar em dificuldades para estabelecer vínculos saudáveis, além de medo de rejeição, insegurança e baixa autoestima. “Ao não receber afeto e cuidado do pai, a mensagem que a criança pode internalizar é que ela não é digna de ser amada,” explica Clapp.

A psicóloga enfatiza que essa percepção é equivocada e que toda criança merece ser amada e cuidada. “Se não fomos cuidados enquanto crianças, isso definitivamente não aconteceu porque não merecíamos, mas sim porque falharam conosco,” esclarece Clapp.

Clapp conclui que a psicoterapia é uma ferramenta valiosa para ajudar aqueles que cresceram sem o cuidado adequado a encontrar um caminho para relacionamentos mais saudáveis e uma melhor saúde mental. “A psicoterapia pode ajudar a ressignificar a história pessoal e construir uma vida mais equilibrada e plena,” finaliza.

Picture of Rebecca Moura

Rebecca Moura

Estudante de Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.