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Entenda o que é “upskirting”, prática de importunação sexual que pode virar crime

(Crédito: Adobe Stock)

A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 583/2020, que criminaliza a prática de upskirting — o ato de fotografar ou filmar partes íntimas de uma pessoa em espaços públicos sem seu consentimento. O texto segue agora para análise no Senado e propõe alterações na legislação, criando um tipo penal autônomo para o upskirting.

A proposta modifica a Lei Carolina Dieckmann, ampliando a criminalização de registros visuais não autorizados de caráter sexual. Em entrevista ao Eufêmea, a advogada especialista em Direito Penal, Jéssica Araújo, afirma que essa nova tipificação atende a uma lacuna legal que as normas atuais não abrangem de forma completa.

Segundo a advogada, a importunação sexual exige que o ato seja praticado com o objetivo de satisfazer a lascívia, caracterizando um ato libidinoso imediato. No caso do upskirting, porém, não há essa exigência de intenção de satisfação, o que torna a adequação ao tipo penal existente complexa e, muitas vezes, insuficiente para abarcar a gravidade da prática.

Para Jéssica Araújo, a criação de um tipo penal específico para o upskirting traz maior clareza jurídica e representa um avanço importante no incentivo à denúncia. “Ao se tornar um tipo penal autônomo, a conduta é mais bem delimitada, facilitando a compreensão pela sociedade. A importunação sexual é um tipo penal amplo, e a definição de ‘ato libidinoso’ pode variar, o que dificulta a caracterização desse crime de maneira clara,” explica.

A advogada ainda pontua que embora o crime possa atingir homens, isso é menos comum, pois geralmente eles não usam saias ou vestidos. “Esse crime específico, upskirt — que, em tradução livre, significa ‘levantar a saia’ —, torna-se mais identificável e pode oferecer maior segurança e incentivo para que as mulheres denunciem essa violação de sua dignidade sexual”, destaca.

Medidas de proteção

Foto: Cortesia

Além de criminalizar o upskirting, a advogada ressalta a importância de medidas complementares para fortalecer a proteção das mulheres, como o treinamento de policiais e seguranças para identificar e lidar com esses casos. “Muitas vezes, as mulheres são desmoralizadas ao tentar denunciar, por isso campanhas de conscientização e políticas públicas que incentivem denúncias, não apenas pela vítima, mas também por testemunhas, são fundamentais”, explica a especialista.

Outras ações sugeridas incluem a instalação de câmeras de segurança em espaços públicos e transportes. “É essencial que existam recursos para proteger as vítimas, como atendimento imediato e acolhimento nas delegacias, algo que ainda é insuficiente, além de treinamento específico sobre segurança pessoal, especialmente em escolas”, pontua.

Para mulheres que suspeitam ter sido vítimas de upskirting, a advogada destaca a importância de seguir alguns passos para garantir proteção e justiça. “O primeiro passo é preservar evidências: manter as roupas usadas ou outros elementos que possam servir de prova e, se possível, registrar vídeos ou gravações no momento, incluindo pessoas ao redor que possam ajudar na identificação”, orienta Araújo.

Segundo a advogada, após reunir o máximo de evidências, a vítima deve informar as autoridades, registrando uma ocorrência na delegacia. Paralelamente, buscar apoio psicológico e jurídico é fundamental. “Monitorar redes sociais e sites em busca de possíveis fotos ou vídeos não autorizados também é recomendável, assim como usar aplicativos para denunciar e solicitar a remoção de conteúdos indesejados. Em alguns casos, é possível entrar com medidas protetivas”, acrescenta.

Além das medidas formais, a advogada destaca a importância das redes de apoio entre mulheres. Ela reforça que compartilhar experiências e buscar fortalecimento conjunto é essencial: “Como diz o ditado, ‘uma andorinha só não faz verão’, mas várias com certeza fazem”, reforça.

“Não há uma punição severa”

No entanto, Jéssica Araújo alerta que, embora o Projeto de Lei 583/2020, que criminaliza o upskirting, represente um avanço, ainda existem desafios na aplicação efetiva da lei. “Isso significa que, se o réu atender a alguns requisitos, como não ter antecedentes criminais, ele poderá continuar como réu primário e sem condenação efetiva. Ou seja, na prática, não há uma punição severa.”

“Esse tipo de crime muitas vezes é visto como legislação de punitivismo simbólico, adotada como resposta rápida ao clamor social. Muitas vezes, como no caso do upskirting, cria-se uma sensação de justiça e controle social sem o devido embasamento técnico e sem mensuração do impacto social”, observa a advogada.

Ela também frisa que, além da legislação, é necessária uma mudança de postura em relação às vítimas, que frequentemente são desacreditadas.

“Esse tipo de crime é difícil de provar, pois ocorre na clandestinidade, sendo a palavra da vítima contra a do acusado. É fundamental evitar a revitimização de quem sofre esse crime e garantir apoio e proteção, ao invés de culpabilizar a vítima pelo ocorrido”, enfatiza.

Impactos e objetificação feminina

Foto: Cortesia

Para Rafaela Mendonça, advogada, professora e especialista em Gênero e Diversidade, o upskirting é uma manifestação extrema e repugnante da objetificação do corpo feminino. “Esse ato reforça a ideia de que o corpo das mulheres pode ser invadido ou controlado, contribuindo para uma cultura de desrespeito à privacidade e intimidade feminina, além de alimentar dinâmicas de poder em que as mulheres são vistas como objetos”, diz.

Ela explica que as consequências emocionais e sociais para as vítimas são devastadoras. Segundo Rafaela, frequentemente as imagens captadas são compartilhadas gratuitamente ou comercializadas na internet, o que causa um impacto profundo na vida das mulheres envolvidas.

“Essa prática gera vergonha, angústia, dor, humilhação, exposição indevida da intimidade da vítima, além de sofrimento emocional, depressão e, em alguns casos, até mesmo suicídio”, observa.

Historicamente, Rafaela destaca que o corpo feminino sempre foi associado à sexualidade e tratado como posse masculina, especialmente nas culturas patriarcais da Idade Média, que viam as mulheres como submissas. Esse padrão, segundo ela, foi reforçado ao longo dos séculos, inclusive nas artes e na literatura. “Durante o Renascimento, as representações femininas nas artes eram majoritariamente centradas na beleza física, com a mulher retratada como objeto de desejo masculino”, aponta.

No século XX, a objetificação feminina se intensificou ainda mais no campo da mídia e da publicidade. Para Rafaela, “o cinema desempenha um papel crucial na objetificação da mulher, especialmente pela forma como as mulheres são filmadas e vistas pelo olhar masculino do espectador”.

Papel da educação

Rafaela defende que a escola desempenha um papel essencial na conscientização e na formação de jovens sobre o respeito à privacidade e aos direitos das mulheres. “Acredito profundamente na força de uma educação crítica e vejo a escola como um espaço essencial para questionar e reconstruir as narrativas sociais.”

Para ela, incorporar temas sobre direitos humanos e igualdade de gênero em disciplinas como Sociologia é fundamental para que os jovens compreendam a importância do respeito à individualidade e a gravidade de práticas como o upskirting.

“Além disso, considerando a influência das redes sociais e das tecnologias, é essencial educar os jovens sobre o uso ético e seguro desses recursos, conscientizando-os sobre o compartilhamento responsável de imagens e a proteção da própria privacidade e da privacidade alheia”, analisa.

“Essas estratégias não só conscientizam, mas também preparam os jovens para agir como agentes de mudança na sociedade, promovendo o respeito aos direitos das mulheres e à privacidade em todas as esferas da vida”, conclui.

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Rebecca Moura

Estudante de Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas e colaboradora no portal Eufêmea, conquistou o primeiro lugar no Prêmio Sinturb de Jornalismo em 2021. Em 2024, obteve duas premiações importantes: primeiro lugar na categoria estudante no 2º Prêmio MPAL de Jornalismo e segundo lugar no III Prêmio de Jornalismo Científico José Marques Melo.