(Tempo de leitura: cinco minutos) – Foto: Reprodução/Chat GPT
Uma nova tendência tem ganhado espaço nas redes sociais: a transformação de fotos pessoais em ilustrações no estilo do Studio Ghibli, tradicional estúdio japonês de animação conhecido por obras como A Viagem de Chihiro, Meu Amigo Totoro e O Castelo Animado. As imagens são geradas por inteligência artificial, a partir do envio de fotos para o ChatGPT, que utiliza comandos visuais para criar versões inspiradas nas animações do estúdio.
A prática, aparentemente inofensiva para muitos usuários, reacendeu o debate sobre os limites éticos e legais do uso da inteligência artificial na produção artística. De um lado, estão os que veem a novidade como forma de entretenimento ou experimentação criativa. De outro, artistas e especialistas alertam para os riscos de apropriação indevida, desvalorização do trabalho humano e violações de direitos autorais.
Com a atualização do ChatGPT para o modelo GPT-4, a ferramenta passou a aceitar interações não apenas por texto e voz, mas também por imagens — incluindo capturas de tela, documentos e fotografias. Embora o tema esteja em evidência agora, o posicionamento crítico do cineasta Hayao Miyazaki, cofundador do Studio Ghibli, não é novo. Em entrevista concedida há quase uma década, Miyazaki afirmou: “Sinto fortemente que isso é um insulto à própria vida”, ao comentar o uso de IA na criação artística.
O que diz a lei sobre obras geradas por IA
A produção de imagens por inteligência artificial pode ser considerada uma forma de apropriação indevida? E como os direitos autorais se aplicam a esse tipo de criação?
Segundo a advogada Flaminhia Silva, especialista em direito cultural e do entretenimento, a legislação brasileira atual — baseada na Lei de Direitos Autorais (nº 9.610/1998) — não reconhece como autor qualquer entidade que não seja uma pessoa física. Ou seja, obras geradas exclusivamente por IA não são protegidas por direitos autorais no Brasil.

“As obras intelectuais são entendidas como criações do espírito humano. Assim como uma pessoa jurídica não pode ser autora, a inteligência artificial também não pode ser titular desses direitos”, explica Flaminhia. Ela pondera, no entanto, que o ordenamento jurídico brasileiro tende a se adaptar às transformações sociais e tecnológicas, como já ocorreu em outras áreas.
Apesar disso, as empresas que desenvolvem e operam ferramentas de IA podem ser responsabilizadas quando suas tecnologias são utilizadas para violar direitos autorais — especialmente em casos de negligência ou conhecimento prévio de uso indevido. Segundo a advogada, a principal dificuldade hoje está na ausência de uma regulamentação específica sobre o tema.
“O problema está em definir o que é considerado ilícito nesse contexto, já que não existe uma legislação clara sobre inteligência artificial. Isso dificulta a aplicação de qualquer tipo de sanção”, afirma.
Aliada ou ameaça? Artistas questionam uso da IA na arte

A artista visual Nathalia Ursa, que atua com ilustração autoral, vê o uso da estética do Studio Ghibli por inteligência artificial como apropriação indevida, não como homenagem. Para ela, o processo criativo está sendo reduzido a comandos automatizados.
“É um roubo do processo criativo. A arte depende de intenção, estudo e emoção. Não de comandos”, afirma.
Para Nathalia, o grande problema está no uso não autorizado de obras de outros artistas como base de treinamento dos sistemas.
A artista também alerta para um movimento crescente no mercado criativo: a substituição de profissionais por sistemas de inteligência artificial. Segundo ela, há anos circulam relatos de demissões em grupos de designers, principalmente após a popularização dessas ferramentas.
“Vejo cada vez mais empresas procurando ‘artistas de IA’ que entreguem centenas de imagens por semana, muitas vezes sem qualquer refinamento ou finalização”, afirma.
O resultado, segundo Nathalia, é um mercado saturado por peças genéricas, repetitivas e com falhas visuais, que ignoram o valor do trabalho autoral e do olhar artístico humano.
“Arte é sentimento, expressão, coração e alma”
A artista visual Joyce Nobre, de 40 anos, adota uma postura crítica, mas ponderada, sobre o uso da inteligência artificial na arte. Ela admite ter participado da tendência que transforma fotos em ilustrações no estilo Ghibli.

“Confesso que entrei na modinha e usei a IA para transformar uma foto do meu filho. Mas acredito que, independentemente da técnica, quem cria uma expressão artística — mesmo com IA — precisa ter direitos sobre isso”, diz.
Para Joyce, o problema não está apenas na ferramenta, mas na forma como ela é utilizada.
“Tudo que possa substituir uma pessoa é uma ameaça. Arte é sentimento, expressão, coração e alma. E isso não pode ser reproduzido por uma máquina”, ressalta.
O uso da IA se torna problemático quando ultrapassa o papel de ferramenta e passa a substituir o trabalho criativo. “Uma coisa é comprar uma arte feita à mão. Outra é mandar a IA copiar e imprimir algo parecido como se fosse seu. Isso não é admiração. Isso é apagar o artista”, afirma.
Ela também observa que muitos usuários da trend não agem com má intenção. “Acho que muita gente só queria se ver como desenho, reviver a infância. Mas quando essa brincadeira vira uma prática intencional de desvalorização do artista, aí já é outro problema — e isso está acontecendo.”
Proteção legal da obra
Em dezembro de 2024, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei nº 2.338/2023, que propõe a criação de um marco legal para o uso da inteligência artificial no Brasil. O texto estabelece diretrizes como a centralidade na pessoa humana, a promoção da inovação responsável e a segurança dos sistemas automatizados. A proposta ainda aguarda votação na Câmara dos Deputados e sanção presidencial para entrar em vigor.
Para Flaminhia, tecnologias que se apropriam de traços criativos únicos podem sim violar a proteção legal da obra, uma vez que a autoria está diretamente ligada à expressão da personalidade do artista.
A advogada orienta que os criadores adotem medidas de autoproteção, enquanto o cenário jurídico permanece indefinido. Entre elas: monitorar o uso de suas obras no ambiente digital, registrar oficialmente suas criações e definir licenças e termos de uso específicos. Essas ações ajudam a comprovar a autoria e facilitam a responsabilização em casos de uso indevido.