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Violência obstétrica: mais uma violência contra a mulher

Ana Carolina Trindade
Advogada especialista em Famílias e Sucessões
@anacarolinatrindade.cohen

Entender para identificar

Diante de tantas formas de violência que precisamos enfrentar, não é incomum a mulher ser submetida a determinados tipos de violência, sofrer das suas consequências, mas não saber como agir, por desconhecer a sua origem, não entender como se manifesta.

A violência obstétrica é um desses tipos difíceis de identificar. Nós não temos o conhecimento técnico, e confiamos um dos momentos mais importantes das nossas vidas a um profissional que deveria estar habilitado a trazer nossos filhos ao mundo com respeito aos nossos corpos; mas que, por vezes, ignoram as nossas escolhas. Na verdade, ignoram até mesmo a nossa possibilidade de escolha, já que para tomar qualquer decisão precisamos estar bem informadas.

A identificação é importante para o enfrentamento, e para que possamos tentar evitar que a agressão ocorra.

A violência obstétrica pode ocorrer durante a gestação, parto e pós-parto. Caracteriza-se pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher por profissional de saúde, por meio de relações desumanizadas, de abusos no uso de medicamentos, na patologização de processos que são naturais. Resulta, portanto, em um desrespeito à mulher, seu processo reprodutivo, seu corpo e sua autonomia.

Nesse contexto, pode se manifestar por meio de violência verbal, física, sexual, pela omissão de informações, ou mediante o recurso a intervenções e procedimentos desnecessários e/ou sem evidência científica.

Dela decorrem complicações de saúde, abalos emocionais, traumas, depressão, dificuldades na vida sexual, e até mesmo morte por negligência.

Trata-se de um tipo subestimado e naturalizado de violência contra a mulher, o que dificulta a elaboração e eficácia de políticas públicas no sentido de prevenir e erradicar este tipo de violação de direitos.

No Brasil, são comuns as intervenções obstétricas dolorosas e desnecessárias, o que torna o parto um motivo de angústia para muitas mulheres.

Conforme estudo do Grupo de Pesquisa “Nascer no Brasil” (ENSP-Fiocruz), embora a recomendação da OMS seja para que as cesarianas não excedam 15% do total de partos, haja vista o risco das elevadas taxas deste procedimento para a mulher e para o bebê, no setor privado a proporção de cesarianas chega a 88%; e no setor público, envolvendo os serviços prestados pelo próprio SUS e por contratados do setor privado, as cesarianas chegam a 46%[1].

A pesquisa verificou, ainda, que apenas 5% das mulheres tiveram partos vaginais sem nenhuma intervenção.

Tais dados revelam apenas a ponta do iceberg, diante do profundo descaso com relação ao pré-natal, parto, nascimento e puerpério no Brasil.

Não chora não, porque ano que vem você está aqui de novo!

Não sabia que doía, por que não fez uma cesária? Na hora de fazer não chorou assim! Se continuar gemendo, ninguém vem te atender.

A violência obstétrica é institucional, e, sem dúvida, uma violência de gênero. Mas é necessário, ainda, fazer um recorte, pois adolescentes, mulheres solteiras, de minorias étnicas, de baixo nível sócio-econômico, mulheres que vivem com HIV e migrantes são particularmente mais propensas a sofrer abusos, maus-tratos e desrespeito.

Para auxiliar na identificação deste tipo de violência, seguem abaixo alguns exemplos de como ela pode acontecer[2]:

– violência física;

– humilhação e abusos verbais;

– omissão de informações sobre procedimentos realizados;

– imposição autoritária e não informada acerca da realização de procedimentos médicos;

– informações parciais ou distorcidas;

– recusa em administrar analgésicos;

– violação da privacidade;

– falta de confidencialidade;

– discriminação baseada em atributos físicos ou sociais;

– abandono, negligência ou recusa de assistência;

– culpabilização;

– recurso a práticas prejudiciais ou ineficazes, tais como: depilação do períneo e lavagem intestinal; separação mãe e bebê; restrições alimentares e de movimentos; restrição de apoio contínuo durante o parto, e de acompanhante;

– realização de cesária sem indicação clínica;

– intervenções para acelerar o trabalho de parto: indução do trabalho de parto sem indicação, ocitocina de rotina (hormônio que tem a função de promover as contrações musculares uterinas durante o parto e a ejeção do leite durante a amamentação), episiotomia (corte realizado no períneo, entre a vagina e o ânus), manobra de Kristeller (pressão na parte superior do útero), aminiotomia (ruptura artificial da bolsa aminiótica), restrição da posição para o parto; uso do fórceps sem indicação (instrumento para a retirada do bebê); toques vaginais dolorosos e sem indicação; puxos dirigidos (pedir para a mulher fazer força e empurrar quando o bebê está prestes a nascer. Recomenda-se o puxo espontâneo, que é realizado naturalmente pela mulher, o que permite uma melhor oxigenação materna e fetal).

– privar a mãe e o bebê do contato pele a pele;

– privar mãe e filho do aleitamento materno.

Conhecer para evitar

O enfretamento à violência obstétrica “exige que os profissionais de saúde de todos os níveis de atenção assumam uma responsabilidade para além das rotinas de pré-natal e do entendimento biomédico da gestação e parturiação”[3]. O conhecimento técnico é essencial, mas é preciso ir além.

É necessário que o profissional de saúde entenda as causas e dimensões estruturais, tenha consciência das desigualdades, e promova tratamento e cuidados respeitosos.

Informação também é a chave para este enfrentamento, pois fortalece a autonomia da gestante e da família.

Garantir uma experiência positiva no pré-natal, parto e pós-parto, o que inclui dar à luz a um bebê saudável, em um ambiente em que são respeitadas as decisões da mulher, e que seja clínica e psicologicamente seguro é também dever do Estado, ao qual cabe reconhecer a importância do combate a este tipo de violência.

Quando o respeito não toma assento, abre-se uma ferida

Lavínia Lins

Psicóloga e Psicanalista

@minutodapsico

Dizem que esse corpo-solo é sagrado

Que é ele que alimenta e dá vida a um novo chegado

Nem de longe se poderia imaginar outro recado

Mas a verdade é que o romance nem sempre é praticado

A dor de parir poderia nem ser sentida

Mas quando o respeito não toma assento, abre-se uma ferida

A mulher que entrega o seu corpo se vê à guarida

De quem dele deveria cuidar na hora exaurida

Mas, por vezes, enquanto lhe cortam a carne, lhe cortam a fala

E a esperança, que dizem não morrer, pode até virar trauma

É que ali, na hora do nascer, por derradeiro se instala

O silêncio barulhento, que só a mulher escuta e que lhe açoita a alma…


[1] Para conferir a pesquisa completa, acesse: https://nascernobrasil.ensp.fiocruz.br/

[2] Fonte: Organização Pan-Americana da Saúde e Organização Mundial de Saúde, 2018: https://www.paho.org/pt/noticias

[3] Portal de boas práticas em saúde da mulher, da criança e do adolescente: https://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/

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Ana Carolina Trindade e Lavínia Lins

Ana Carolina Trindade é advogada, especialista em Direito e Família e Sucessões. Graduada e Mestre em Direito pela UFAL. Também é professora e Doutoranda. Lavínia Lins é psicóloga clínica, psicoterapeuta com base de trabalho na Psicanálise, escritora e palestrante.