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“Ela jogava água benta na minha mesa”: mulheres relatam casos de intolerância religiosa no trabalho

Foto: Ailton Cruz

A intolerância religiosa é crime no Brasil e diversas leis asseguram a liberdade de culto e a proteção a quem queira professar a sua fé em território nacional. Começando pela Constituição Federal, que em seu artigo 5º, inciso IV, garante que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.

O Código Penal Brasileiro, por sua vez, estabelece em seu artigo 208, que é crime “escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”.

Recentemente, a Lei nº 14.532/2023 acrescentou ao artigo 140 do Código Penal o parágrafo terceiro, que determina que, no caso do crime de injúria, se consistir na utilização de elementos referentes à religião, a pena será aumentada.

Aparentemente, o poder público tem ampliado esforços no sentido de coibir tal prática, legislando a respeito e buscando acolher as vítimas com espaços especializados para cumprir efetivamente as diligências sobre a matéria. Em Maceió, por exemplo, foi inaugurada em 2022, a Delegacia Especial dos Crimes contra Vulneráveis Yalorixá Tia Marcelina, cujo nome faz referência a uma importante praticante do candomblé que teve seu terreiro destruído.

Número de casos só aumenta
Foto: Cortesia

Apesar dessas medidas, os casos seguem crescendo. Este ano, somente na Comissão de Promoção e Igualdade Racial da OAB Alagoas, foram registrados mais que o dobro de casos em relação ao ano passado, foram 4 denúncias em 2022, contra 10, até outubro de 2023.

Membra da Comissão, Jeysilla Nascimento, explica que a Ordem possui uma frente de atuação específica para Intolerância Religiosa, mas que o trabalho das duas, na prática, é interrelacionado.

“Infelizmente, sabemos que a maioria das denúncias diz respeito às religiões de matriz africana, então atuamos em conjunto entre as Comissões de Igualdade Racial e Intolerância, nesses casos”.

“Ficava perguntando se queriam acarajé”
Foto: Cortesia

Charlene Araújo sabe muito bem o que é passar por esse tipo de preconceito. A jornalista alagoana deixou de ser apenas uma repórter para se tornar notícia no cenário local quando, durante um período de preceito, após sua iniciação no Candomblé, passou a trabalhar caracterizada de acordo com as normas de sua religião.

“Um técnico da transmissão não sabia que eu o estava ouvindo pelo fone e ficou insistentemente perguntando aos colegas se alguém queria acarajé. Também me perguntaram se eu estava andando fantasiada e se já estava no clima ‘afro’. Tem gente que, em tom de brincadeira, solta: não vai fazer macumba para mim não, né?!”.

Ela disse que em alguns casos é preciso falar com mais firmeza para ser respeitada e para que as pessoas entendam que as palavras delas podem machucar. “Quando vejo alguém com atitude preconceituosa, busco o equilíbrio e lembro das sábias palavras da minha avó: cada um dá o que tem”.

“Jogaram água benta nas minhas coisas”

A analista comercial de vendas, também praticante do candomblé, e que prefere não ser identificada, relata que passou por episódios críticos de intolerância religiosa recentemente em seu ambiente de trabalho. Ela conta que vinha notando que a sua mesa sempre estava molhada quando chegava na empresa e não entendia o motivo.

“Em um desses dias, eu saí no meu horário e quando cheguei na portaria do empresarial, me dei conta de que havia esquecido minha agenda. Voltei pra buscar e me deparei com minha mesa encharcada de água. Ao levar para a gerente no dia seguinte, ela disse que estava jogando água benta na empresa toda. Em poucos dias descobri que ela quem mandou jogar essa água benta nas minhas coisas”.

Ela diz ainda que viu o preconceito surgir há muito tempo, desde que assumiu a religião perdeu amigos e foi estigmatizada dentro da própria casa.

“Meu pai é católico e minha mãe, espírita. Fui batizada na igreja, participava de atos dominicais, mas nunca me identifiquei. Quando decidi externalizar isso, foi onde percebi que não seria um caminho fácil a percorrer. Vi “amigos” se afastarem por associar a religião à magia negra. Meu pai me hostilizando por escolher seguir a religião da mãe dele (minha vó)”.

Apesar de o caso ter sido encerrado e da empresa ter tratado com muita responsabilidade, afastando todos os envolvidos, cabe à analista ainda hoje lidar com as feridas psicológicas que foram abertas. “Fiquei arrasada, sem chão. Diante de todos os casos que eu passei, esse foi o que mais me deixou prejudicada psicologicamente. Hoje eu estou em acompanhamento psicológico/psiquiátrico. Dia após dia tenho superado esse trauma”.

Violência psicológica e moral
Foto: Cortesia

E gera traumas. A psicóloga Diana Moura explica que ao praticar a intolerância, estamos diante dois tipos de violência muito comuns, a psicológica e a moral, e os danos provocados se assemelham aos sintomas de vítimas de violência.

“Porque estamos assim, de fato, nos utilizando de práticas de violência que afetam a saúde mental do outro, então temos pessoas com quadro de amedrontamento, de como o outro vai reagir em relação a sua escolha, quadro de ansiedade, isolamento social por não se sentirem pertencentes a determinados grupos, o que se torna agravado no caso de pessoas mais jovens, em plena formação da personalidade”, aponta.

Hoje, as denúncias de intolerância religiosa em Maceió são feitas dentro do Complexo de Delegacias Especializadas, de segunda a sexta, das 8h às 17h. E é importante que a vítima leve consigo o máximo de informações e provas que puder, inclusive, provas testemunhais.

“Ela também pode contar com o suporte da OAB, acompanhamos até a delegacia, damos suporte ao processo. A luta antirracista é algo que não pode parar, é uma questão que precisa ser reafirmada, é preciso defender sem descanso a laicidade que a nossa Constituição e o nosso Estado estabeleceram, compreendendo que todas as religiões precisam ser respeitadas”, completa Jeysilla.

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Meline Lopes

Jornalista, advogada, especialista em comunicação e em marketing digital. Atuou como repórter de televisão durante 9 anos em diversas emissoras do Brasil. É repórter do Eufêmea.