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Visibilidade trans: desejo anônimo, violência explícita

Foto: Isis Florescer

Celebrado em 29 de janeiro de 2004, o dia da visibilidade trans é um marco na história do movimento contra a transfobia e na luta pelos direitos da comunidade. Nessas duas décadas, o país registrou conquistas, a exemplo do Ambulatório do Processo Transexualizador do SUS, o reconhecimento legal da identidade de pessoas trans e criminalização da LGBTfobia.

Contudo, esses avanços coexistem com uma dura realidade: o Brasil é, há quinze anos, o país que mais mata pessoas trans no mundo, conforme dados do TGEU (Trans Murder Monitoring).

Curiosamente, desde 2016, figuramos também no topo de outra lista: a do consumo de pornografia trans, de acordo com relatório publicado anualmente pelo PornHub.

Desejadas e odiadas

Histórica e paradoxalmente, os corpos trans são desejados e, ao mesmo tempo, tratados como objetos, fetiches ou fantasias, sendo rotineiramente abusados e mortos. 

Para Ísis Florescer, atriz, escritora, ativista trans e militante progressista, apesar dos avanços, o Brasil segue sendo um país inseguro para a comunidade trans.

“A jornada de uma pessoa trans é atravessada por diversas exclusões. Em pleno ano de 2024, é ainda um desafio pensar numa sociedade menos preconceituosa e que discrimina nossas vidas diariamente.” 

O relatório de 2023 do PornHub também destaca um aumento de 75% nas pesquisas gerais sobre pornografia trans, elevando essa categoria à sexta posição nas pesquisas internacionais. As buscas mais populares no Brasil incluíram “surpresa transgênero” (transgender surprise) que teve aumento de 490%. Nenhum outro país teve um aumento tão alto.

Quando analisado por gênero, o relatório mostra um crescimento no interesse entre as duas categorias. As buscas por ‘Transgender’ (transgênero) subiram duas posições quando comparadas ao ano de 2022 isoladamente entre os homens. E ao observar as pesquisas mais buscadas comparativamente por mulheres do que por homens, Transgênero aumentou 175% em 2023.

‌“Única forma de sobrevivência”

Ainda de acordo com Ísis, também é preciso observar a crescente oferta. O interesse da população trans pelo trabalho na indústria da pornografia nem sempre é escolha.

“Ser abusada e violentada no seio familiar, ser expulsa de casa, não conseguir completar os estudos formais devido a discriminação nos espaços educacionais, e não ter oportunidades de trabalho formal: 80% dessas mulheres trans e travestis são empurradas para a prostituição tendo este recurso como única forma de sobrevivência.”

As mulheres transexuais e travestis, frequentemente procuradas em sites pornográficos, representam 95% das vítimas assassinadas, de acordo com dados da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).

‌Conservadores, mas consumidores

Ao analisar as gerações, observa-se que a busca por pornografia trans ganha destaque entre os baby boomers, um grupo que, curiosamente, pesquisou 58% mais pornografia trans em 2023 e comparação com o anterior. Um indício intrigante, pois os boomers (+55 anos) muitas vezes são associados a posturas antitrans e conservadoras.

Sobre este ponto de análise, Ísis afirma que “a violência contra nossos corpos está atrelada ao consumo e à objetificação sexual aos quais somos aprisionadas”.

“Isso ocorre para servir aos tais cidadãos de bem, homens de mentalidade e comportamento conservadores e religiosos, que procuram nossos corpos para suas aventuras e escapes sexuais”.

A interseção entre o consumo de pornografia e os assassinatos de pessoas trans no Brasil é um fenômeno complexo. Os discursos de ódio e políticas conservadoras parecem influenciar diretamente a violência contra a comunidade, alimentando uma busca crescente por corpos trans no anonimato do ambiente virtual.

“Pessoas que mais consomem nossos corpos”

Sophia Braz Francelino, influencer digital, professora, yalorixá e presidente da associação LGBTQIAPN+ e povos de terreiros de Alagoas aponta que esses dados só comprovam que o conservadorismo patriarcal assusta e que as pessoas que mais criminalizam a existência da população travesti e transexual são as pessoas que mais consomem seus corpos. 

“Na verdade, são pessoas que vivenciam a homossexualidade internamente e não querem, de fato, assumir essa orientação para a sociedade. Acreditam que ao se mostrarem cada vez mais conservadoras dentro desse patriarcado, acabam por ameaçar ainda mais a nossa existência na história do Brasil.”

‌Sexo sem compromisso

Visíveis e desejadas no virtual, invisíveis e indignas na vida real. Existe um processo histórico de hipersexualização e fetichização em relação aos corpos trans, lidos como fantasia, sempre à disposição para quem procura. Por outro lado, estes ‘objetos de desejo’ causam simultânea repulsa à ideia de envolvimento afetivo. 

Ainda de acordo com Sophia, a solidão é uma realidade comum entre mulheres trans. “Passamos por situações de invisibilidade, objetificação e exclusão vivendo em uma  sociedade majoritariamente cisgênera. A ausência de afeto e oportunidades, seja nas relações afetivas, no trabalho, academia ou no meio social,  também são formas de transfobia. Milhares de ‘Homens Heterossexuais’ falam comigo na rua se afastando com medo do que os olhares da sociedade vão ver”, revela.

“Nossos corpos políticos assustam”

Apesar de distante, Ísis vê uma saída e ela é política, está na organização coletiva, nas pessoas públicas e na mobilização para as pautas de interesse da comunidade por parte dos grupos e organizações.

“Escolher representantes para atuar nos espaços legislativos e executivos que levantem a bandeira da vida, do respeito, da inclusão e da dignidade para os corpos trans. Além de se empoderar e usar os direitos conquistados e serviços ofertados para mostrar ao Estado que existimos e que precisamos de mais acesso e oportunidades para permanecermos vivas.”

Para além disso, Sophia afirma que o Brasil tem uma dívida interna com transvestidas e transexuais há décadas e lembra que até bem pouco tempo atrás, 2014, eram bem mais que invisíveis, a população era tratada como patologia. 

“Nossos corpos políticos assustam porque, apenas, nós mostramos quem nós somos sem nenhuma faceta. Viver a transexualidade é mostrar para o mundo que somos capazes de sermos o que nós somos, tanto na nossa intelectualidade, no nosso íntimo, como na nossa aparência.”

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Meline Lopes

Jornalista, advogada, especialista em comunicação e em marketing digital. Atuou como repórter de televisão durante 9 anos em diversas emissoras do Brasil. É repórter do Eufêmea.