Foto: Carolina Guerreiro
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu no Supremo Tribunal Federal (STF) a procedência da ação que pretende garantir que vítimas de crimes sexuais sejam tratadas de forma digna durante a tramitação de processos. No parecer elaborado pela Advocacia-Geral da União (AGU), Lula e o órgão se manifestaram a favor do entendimento para impedir que juízes avaliem a vida sexual pregressa da vítima.
A ação foi impetrada junto ao STF no fim do ano passado por meio da Procuradoria Geral da República. O órgão quer impedir a desqualificação moral de mulheres que denunciam crimes sexuais. Mas o que será, de fato, que manifestação muda para as mulheres? O Eufêmea conversou com duas advogadas para entender o que ocorre na prática com mulheres vítimas deste tipo de crime.
A advogada, procuradora estatal, membro da Associação das Mulheres Advogadas de Alagoas, Carolina Guerreiro, esclarece que o parecer foi opinativo e o que de fato fará a diferença jurídica é o julgamento da ação pelo Supremo.
“A manifestação do Presidente da República, dada através de parecer da AGU – Advocacia Geral da União, se deu no bojo da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – 1107, proposta pela Procuradoria Geral da República e é o seu julgamento que devemos acompanhar”.
“Aquela não era uma mulher digna”
Nesta ação, a PGR alega que o discurso de desqualificação da vítima, mediante a análise e a exposição de sua conduta e hábitos de vida, parte da premissa que seria possível distinguir mulheres que merecem ou não a proteção penal pela violência sofrida, o que, de acordo com a advogada, é uma estratégia comum da defesa de quem atua na parte contrária à vítima.
“A narrativa da desqualificação da vítima é recorrentemente usada por colegas que trazem ao processo elementos irrelevantes para o julgamento da lide, tais como, conduta social, estilo de vestir, posicionamento em redes sociais, apenas para criar uma imagem de que, aquela vítima não era uma mulher digna e portanto, não merece defesa”.
Ela pontua ainda que a narrativa da desqualificação da vítima não é uma realidade apenas nos processos de violência. “Há casos de processos de guarda de menores, onde se procura desqualificar a mãe, casos de processos de assédio em ambiente de trabalho, onde novamente a conduta da mulher é julgada, enfim, a estratégia é perpetuada a todo momento quando falamos de defesa de mulheres”.
Caso emblemático e que foi um dos motivadores da ADPF foi o da influenciadora Mariana Ferrer. Ela sofreu violência em 2018 e, em seu julgamento, foi vítima de nova violência por tentativa de descredibilização pelo julgador. O juiz responsável pelo caso, Rudson Marcos, foi advertido pelo CNJ e o episódio provocou a aprovação da Lei Mari Ferrer, norma que protege vítimas e testemunhas de constrangimentos.
“Culpabilizar a mulher é cultural e milenar”
Para a especialista em direito de família e atuante em defesa de mulheres vítimas de violência doméstica e sexual, advogada Andrea Alfama, a prática, não apenas é uma estratégia comum da defesa do acusado, vai além, é uma questão cultural que busca mais um meio de tentar culpabilizar a mulher pela violência sofrida.
“É uma questão milenar, eu diria. Sempre tenta-se colocar a violência sofrida como justificativa por qualquer conduta que a mulher adote. Na maioria esmagadora dos casos de violência contra a mulher, a mulher não deu causa, ela sofreu violência, seja sexual, física, patrimonial, moral, psicológica, porque ela está inserida num contexto de relacionamento abusivo, seja no seio familiar ou no seio conjugal”.
Carolina Guerreiro concorda que tais eventuais considerações sobre o comportamento partem de uma cultura machista, patriarcal e discriminatória que deveriam ser rechaçadas pelos operadores do direito e sociedade em geral. “Na prática, quando se fala de julgamento de crimes relacionados à violência sexual contra a mulher, o único elemento que deveria ser apreciado é consentimento da vítima”, afirma.
Em um dos casos que veio à tona, o que hoje se sabe é que a influenciadora vive afastada das redes sociais e em depressão, sobrevive com ajuda de tratamento psicológico e medicamentos tentando superar os danos físicos e traumas psicológicos causados pela agressão e julgamento. Andrea diz que vê com bons olhos o julgamento da ADPF, que tem esperança de uma nova perspectiva por parte do Judiciário.
“É uma mudança de paradigma, principalmente se a gente comparar com o que foram os últimos quatro anos de governo, em que não havia políticas de fato voltadas para a defesa das mulheres. Não há justificativa para o cometimento de violência. Quando as instituições não protegem a vítima, ajudam o agressor e fortalecem a violência”.