Colabore com o Eufemea
Advertisement

Quando a palavra da vítima não basta: por que ainda duvidamos das mulheres que denunciam?

Por Bruna Sales

Denunciar uma violência nunca é fácil. Além do trauma, do medo e da exposição, as vítimas ainda enfrentam outro obstáculo: a dúvida. “Será que ela está exagerando?”, “Ela tem certeza do que aconteceu?”, “E se estiver mentindo?” – essas são perguntas que surgem nos tribunais, na mídia e até em conversas do dia a dia.

Se na última semana discutimos como a tese da loucura tem sido usada para isentar agressores, agora voltamos nosso olhar para outro mecanismo que sustenta a impunidade: a descrença sistemática na palavra da vítima. Por que, ainda hoje, tantas mulheres precisam provar que falam a verdade ao denunciar uma violência?

Por que a palavra das mulheres é sempre questionada?

Desde sempre, a sociedade criou mecanismos para silenciar as mulheres. A desconfiança na palavra da vítima vem sendo construída há séculos. Como explica Pierre Bourdieu, em A Dominação Masculina, vivemos em um sistema que naturaliza a desigualdade de gênero, colocando os homens como detentores da palavra e da razão. Isso significa que, quando uma mulher denuncia uma violência, ela não é imediatamente ouvida – antes, precisa passar por uma série de testes e questionamentos para provar que sua versão é confiável.

Judith Butler, em Problemas de Gênero, reforça que o que é considerado “real” ou “verdadeiro” na sociedade não é neutro – é construído por discursos e relações de poder. No caso da violência contra mulheres, isso significa que a verdade da vítima só é aceita quando se encaixa em determinados padrões: ela precisa ser frágil, coerente, sem contradições e reagir “como uma vítima deveria reagir”.

Se foge desse roteiro, sua palavra perde força. A sociedade estabelece padrões rígidos para a figura da “vítima ideal”, e se uma mulher não se encaixa nesse estereótipo — seja por sua reação emocional, histórico pessoal ou tempo levado para denunciar — sua credibilidade é imediatamente questionada.

Essa lógica se reflete diretamente no sistema de justiça: a vítima precisa ser “perfeita” – se demorou a denunciar, se retomou contato com o agressor ou se não chorou ao relatar o que aconteceu, sua credibilidade é colocada em xeque. Esse julgamento ignora completamente os efeitos do trauma na memória e na narrativa.

Em vez de exigir que o agressor prove sua inocência, muitas vezes é a vítima que precisa demonstrar, com evidências incontestáveis, que foi violentada. A desconstrução moral da vítima – seu histórico, sua roupa no dia do crime e até sua vida sexual são usados para desqualificar seu depoimento.

Com isso, muitas mulheres desistem de denunciar, pois percebem que o sistema não está do lado delas. O silêncio se torna uma escolha forçada.

A descrença institucional e a produção do silêncio

Essa desconfiança não acontece por acaso – é um mecanismo de um sistema que historicamente favoreceu os agressores. A filósofa Miranda Fricker, em Epistemic Injustice, explica que algumas pessoas são sistematicamente vistas como menos confiáveis, simplesmente por pertencerem a grupos historicamente oprimidos.

No caso da violência contra a mulher, isso significa que a palavra masculina é, muitas vezes, automaticamente mais válida que a feminina.

Esse descrédito não apenas reforça a impunidade, mas também afeta profundamente as vítimas: Muitas desistem de denunciar – Se ninguém acredita, por que se expor ainda mais?

Elas começam a duvidar de si mesmas – O questionamento constante faz com que até a própria vítima se pergunte: “Será que foi tão grave assim?”

O agressor se fortalece quando não há punição, pois a mensagem transmitida é de que a violência é aceitável. Como explica Judith Butler, em Problemas de Gênero, a repetição desses discursos não apenas reflete a realidade, mas a constrói. Quando o sistema de justiça desacredita as vítimas, ele não está apenas reproduzindo um viés social, mas fortalecendo essa estrutura de desigualdade e fomentando uma sociedade cada vez mais violenta, que vitimiza e culpabiliza as mulheres.

Para que a palavra da vítima seja realmente levada a sério, algumas mudanças estruturais são urgentes. É necessário rever como o sistema de justiça trata essas mulheres, pois tribunais precisam compreender o impacto do trauma e evitar práticas que revitimizam as vítimas.

Além disso, a formação de profissionais do direito deve ser aprimorada, garantindo que juízes, promotores e advogados sejam treinados para reconhecer e evitar preconceitos de gênero. A interseccionalidade também precisa ser levada em conta, pois mulheres negras, indígenas, pobres e LGBTQIA+ enfrentam ainda mais descrédito quando denunciam a violência.

Esse recorte deve estar presente nas políticas de combate à violência para que sejam realmente eficazes. E, por fim, é urgente mudar o discurso na sociedade: a pergunta não pode mais ser “será que foi mesmo violência?”, mas sim “por que ainda duvidamos das vítimas?”.

A atuação de profissionais especializados em questões de gênero é fundamental nesse processo. Psicólogos, assistentes sociais e advogados com formação específica podem oferecer suporte adequado às vítimas, auxiliando na condução dos processos e garantindo que suas vozes sejam ouvidas e respeitadas. Esses profissionais desempenham um papel crucial na identificação e na elucidação da violência de gênero, proporcionando um ambiente mais acolhedor e justo para as denunciantes.

Os dados sobre violência de gênero no Brasil reforçam a urgência desse debate. Segundo o IBGE, em 2019, aproximadamente 29,1 milhões de pessoas no Brasil sofreram algum tipo de violência, sendo que mulheres, jovens e pessoas negras foram as principais vítimas. Especificamente, 52,4% das mulheres que relataram violência física indicaram cônjuges, companheiros ou namorados, incluindo ex-parceiros, como agressores.

Em contraste, 34,5% dos homens vítimas de violência física apontaram desconhecidos como autores da agressão. Esses números revelam que a violência contra a mulher ocorre predominantemente no ambiente doméstico e é perpetrada por parceiros íntimos, indicando uma dinâmica de poder e controle dentro das relações afetivas, onde muitas mulheres se encontram em situação de vulnerabilidade.

O Instituto Avon, em 2023, destacou que 47% das mulheres nordestinas declararam ter sofrido alguma forma de violência doméstica ao longo de suas vidas. Além disso, 67% afirmaram conhecer uma amiga, familiar ou conhecida que já sofreu violência doméstica e familiar.

O fato de quase metade das mulheres do Nordeste já ter experienciado violência dentro de casa e de 67% conhecerem alguém próximo que também sofreu demonstra que esse problema está profundamente enraizado e, muitas vezes, normalizado. A proximidade com casos de violência pode criar um ciclo de aceitação e silêncio, dificultando a denúncia e a busca por ajuda.

Embora os princípios do contraditório e da ampla defesa sejam fundamentais no sistema jurídico, garantindo que todos tenham direito a uma defesa justa, é crucial reconhecer que a maioria esmagadora dos casos de violência doméstica tem mulheres como vítimas e homens como agressores. Embora existam casos de denúncias falsas, pesquisas indicam que são minoria. Portanto, políticas públicas e ações sociais devem focar na proteção das vítimas e na prevenção da violência, sem desconsiderar os direitos dos acusados, mas reconhecendo a disparidade nos números de vítimas e agressores.

É imperativo que a sociedade como um todo – incluindo governos, instituições e indivíduos – reconheça a extensão do problema e trabalhe ativamente para criar ambientes seguros e de apoio para as mulheres. Isso envolve desde a implementação de políticas públicas eficazes até a promoção de campanhas educativas que desafiem normas culturais prejudiciais e incentivem a denúncia e o apoio às vítimas. A ideia de que a palavra da vítima “não basta” é um reflexo de um sistema que sempre descredibilizou as mulheres.

Para que a justiça seja, de fato, justa, é preciso romper com esse ciclo de dúvida e silenciamento. Enquanto o benefício da dúvida estiver sempre do lado do agressor, a impunidade seguirá sendo a regra – e as vítimas, mais uma vez, as únicas punidas.
Para quem quiser aprofundar o tema:

  • BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Bertrand Brasil, 1998.
  • BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade. Civilização Brasileira, 2003.
  • FRICKER, Miranda. Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing. Oxford University Press, 2007.
  • CRENSHAW, Kimberlé. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color. Stanford Law Review, 1991.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Violência atingiu 29,1 milhões de pessoas em 2019; mulheres, jovens e negros são as principais vítimas. Agência de Notícias IBGE, 2020. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/30658-violencia-atingiu-29-1-milhoes-de-pessoas-em-2019-mulheres-jovens-e-negros-sao-as-principais-vitimas. Acesso em: 16 fev. 2025.
  • INSTITUTO AVON. Mapa nacional da violência de gênero traz dados atualizados com recortes por estado. Instituto Avon, 2023. Disponível em: https://institutoavon.org.br/mapa-nacional-da-violencia-de-genero-traz-dados-atualizados-com-recortes-por-estado/. Acesso em: 16 fev. 2025
Foto de Direito Delas

Direito Delas

Advogadas comprometidas com a defesa dos direitos das mulheres e a construção de uma justiça mais acessível e humanizada. Anne é Mestra em Sociologia pela UFAL e especialista em Direitos Humanos, Direito das Famílias, Direito Civil e Processo Civil; Bruna é Mestra em Direito Público pela UFAL, especialista em Direito do Trabalho, Doula e Analista Comportamental.