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Luana Rodrigues, 44 anos, alagoana e mãe de cinco crianças atípicas, enfrentou abusos na infância, um casamento violento e a perda parcial da visão. Sua trajetória é marcada por inúmeros desafios — mas ela escolheu reescrever a própria história e construiu, do zero, um projeto que hoje oferece suporte, visibilidade e oportunidades para centenas de famílias atípicas em Alagoas.
Da infância marcada por abusos à denúncia que rompeu o silêncio
As memórias de infância de Luana se dividem entre tardes de risadas no sítio da avó paterna, no interior de Pernambuco, e o início de um ciclo de violência que duraria anos. Ainda criança, ela foi vítima de abusos cometidos pelo próprio pai, que, na época, ocupava o cargo de promotor de Justiça no Ministério Público de Alagoas.
Já adulta e cansada de reviver aquele trauma em silêncio, Luana decidiu denunciar o agressor. A decisão quase lhe custou a vida: ela foi espancada, estrangulada e só não morreu porque foi socorrida pela polícia.
Em 2006, reuniu forças para denunciá-lo novamente. Dessa vez, ele foi acusado e condenado a mais de 38 anos de prisão pelos crimes de violência e estupro cometidos contra ela. Após as primeiras denúncias, outras vítimas apareceram, e a pena foi ampliada para 76 anos.
“Apesar de tudo, hoje não dói falar a respeito, pois minha voz só serve para levantar outras mulheres de suas dores semelhantes à minha”, afirma ao Eufêmea.
Empreendedorismo, luto e a perda da visão
Após isso, Luana decidiu recomeçar. Apaixonada pela confeitaria — habilidade que aprendeu ainda na infância com a avó — e movida pelo desejo de empreender, que dividia com a mãe (falecida em 2008), ela começou a vender bolos e lanches. Além de garantir uma renda extra, que ajudou a montar o enxoval do primeiro filho, a atividade funcionou como alívio emocional diante do luto e das dores acumuladas.
Em 2010, concluiu a faculdade de Direito, casou-se e teve mais quatro filhos. Mas foi na confeitaria que encontrou seu verdadeiro propósito, formalizando o trabalho que já vinha realizando.
Em 2014, um novo desafio a fez desacelerar: Luana teve descolamento de retina nos dois olhos e perdeu completamente a visão do olho esquerdo. Após o episódio, precisou se afastar da confeitaria por um ano e meio. Mas a paixão pelo ofício a motivou a se reinventar novamente, adaptando sua rotina na cozinha à nova condição visual.
Em 2021, sofreu um novo deslocamento no olho direito. Já em 2024, veio o diagnóstico de glaucoma avançado, que comprometeu ainda mais sua visão. O agravamento fez com que ela decidisse encerrar as atividades da loja física e passasse a atender por encomendas, produzindo em casa.
Mesmo com os desafios impostos pela deficiência visual, Luana afirma que ainda enfrenta julgamentos por “não parecer ter deficiência”, inclusive nas redes sociais.
“Fácil não é! Já sofri diversos preconceitos, até mesmo por usar bengala. Mas nada tira meu ânimo de viver e ver o mundo da forma que eu posso ver”, diz.
Diagnóstico dos filhos, maternidade solo e saúde mental

Mãe de cinco crianças atípicas, Luana se tornou uma referência para centenas de outras famílias que enfrentam os desafios da maternidade neurodivergente em Alagoas. Mas, apesar da força que hoje inspira tantas pessoas, ela faz questão de não romantizar a própria história.
Ela relembra o período em que recebeu o diagnóstico do primeiro filho com Transtorno do Espectro Autista (TEA), em meio a um divórcio conturbado e uma profunda crise emocional.
“Passei por um divórcio em que precisei pedir medida protetiva e fazer um longo tratamento contra depressão. Junto a isso, a luta para cuidar sozinha das crianças e trabalhar. Cheguei a pesar 45 kg. Estava desaparecendo”, recorda.
Um ano após o primeiro diagnóstico, o filho caçula também foi diagnosticado com TEA. Ao observar as particularidades de cada um, Luana decidiu buscar avaliações para todos os filhos. O resultado confirmou o que ela já intuía: os três mais velhos foram classificados no nível 1 de suporte; os dois mais novos, nos níveis 2 e 3.
Famílias Atípicas Empreendedoras: o projeto que virou rede de apoio

O diagnóstico dos filhos foi o ponto de partida para que Luana criasse um projeto capaz de transformar a vida de muitas outras famílias. Em um dos momentos mais desafiadores de sua trajetória, ela enxergou na dor uma motivação para gerar acolhimento e ação coletiva.
“Em maio de 2023, senti pela primeira vez que deveria unir famílias que cuidam de pessoas com deficiência para empreenderem juntas. Pouco tempo depois, em uma audiência pública sobre saúde mental materna, falei sobre minha ideia com outras mulheres. Mas foi só em agosto daquele ano que o projeto saiu do papel”, relembra.
Assim nasceu o Famílias Atípicas Empreendedoras, iniciativa que busca impulsionar e criar oportunidades para famílias de pessoas atípicas que empreendem. Devido à alta demanda de cuidados, muitos cuidadores precisam de rotinas de trabalho mais flexíveis, que se adaptem às necessidades diárias da família.
Pensando nisso, Luana se dedica a encontrar espaços inclusivos e gratuitos onde esses empreendedores possam expor seus produtos e serviços. Além das feiras presenciais, ela criou um grupo no WhatsApp para facilitar as vendas online — permitindo que as famílias gerem renda sem abrir mão do cuidado diário.
Com pouco mais de dois anos de atuação, o projeto não para de crescer. Em processo de formalização como associação, já conta com 340 famílias cadastradas, das quais 112 empreendem ativamente. O impacto também se reflete nas redes sociais: no Instagram, a página do projeto ultrapassa 54 mil visualizações mensais.
Em 2024, Luana foi reconhecida com o Prêmio Gerônimo Ciqueira, em homenagem à sua dedicação à causa da pessoa com deficiência.
“Deus colocou toda a ideia no meu coração. E desde então, me tornei uma mãe com rede de apoio, porque criei a minha própria rede. Digo às pessoas que meu projeto é um sexto filho, ao qual me dedico de todo o coração”, afirma.
“Sobrevivi e ressignifiquei”: o poder da escuta e da cura
Ao refletir sobre o próprio passado e analisar todas as injustiças que enfrentou, Luana não hesita em afirmar: “Tudo que eu vivi, sobrevivi e ressignifiquei reflete em quem sou hoje.”
Ela acredita que o caminho trilhado a fortaleceu e a ensinou a não se entregar diante das dificuldades. Ainda assim, faz questão de destacar a importância de olhar para si mesma e buscar meios que a ajudassem no processo de cura.
“Tive a oportunidade de ir ao psicólogo, me envolver em ONGs, passar por sessões de constelação e também fazer tratamento psiquiátrico. Me trato até hoje e não tenho vergonha nenhuma de dizer, porque saúde mental importa — principalmente em uma vida como a minha”, afirma.
Para ela, esse cuidado deveria ser um direito garantido a todas as mulheres, especialmente aquelas que enfrentam sobrecarga materna ou sobreviveram à violência intrafamiliar e doméstica.
Planos para o futuro e o desejo de transformar ainda mais vidas
Esperançosa, Luana conta que tem diversos sonhos — tanto pessoais quanto para o projeto que criou. Entre eles, está a construção de uma sede onde as famílias possam empreender enquanto as crianças são acompanhadas por terapeutas. A proposta é criar um espaço de inclusão real, que respeite as necessidades de quem cuida e de quem é cuidado.
“O sonho é alto, mas todos os dias estou avançando em busca dele”, diz. Ela afirma que o amor pelos filhos é o que lhe dá forças diariamente para seguir em frente. E mesmo diante de tantos desafios, reforça que é possível manter o sorriso no rosto: “As dificuldades não definem quem eu sou.”